Instituto de Estudos sobre o Modernismo

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sexta-feira, 13 de julho de 2012

GUERREIRO E CAVALCANTI


Teresa Rita Lopes


A 30 de Junho passado, o Expresso publicou uma crítica, de António Guerreiro, sobre a biografia pessoana de Cavalcanti Filho, que me nomeia. Invocando a Lei de Imprensa, respondi com o texto que segue, que a direcção desse jornal me propôs apenas publicar como "carta ao Director", e com um quarto dos caracteres, o que naturalmente recusei. O que pretendo não é polemicar com o crítico mas lançar alguma luz sobre a tão debatida questão da sexualidade pessoana, fulcro da crítica em questão - o que não seria possível no exíguo espaço concedido.



Guerreiro e Cavalcanti

(Observações a uma crítica que me nomeia)

Contaram-me que há um ditado em Pernambuco (terra natal do Dr Cavalcanti Filho) que reza: “ Cavalga se não queres ser cavalgado”. É isso que ele faz, com denodo, desde que rebentou esta discussão sobre o valor da sua biografia (“quase autobiografia”). Até à publicação, no Público, da crítica que este jornal me solicitou, nenhum crítico se tinha ainda pronunciado a valer: só aplausos soltos de quem – na melhor das hipóteses –  tinha  sobrevoado as 700 e tal páginas da obra. Só agora António Guerreiro vem botar palavra sobre o livro. Mas não só. Bem que podia não me ter metido ao barulho!  Mas já que o fez, e por respeito para com os leitores de jornais (espécie em vias de extinção), vou ter que denunciar a sem-razão de umas flechas que este Guerreiro me lançou, recusando-me, contudo, a entrar em combate. Sou pacifista e as minhas batalhas são outras: uma quotidiana militância contra a incultura reinante e galopante e os que a cultivam e propiciam. (E particularmente contra o fétido lamaçal em que os próprios (soi- disant) agentes da cultura patinham, à semelhança e por contaminação do que acontece sociopoliticamente falando.) Já me bastou ter que enfrentar, a pé, o Cavalcanti: ele tem hostes, fortuna, compadrios. Eu estou sozinha e desarmada – só com as minhas razões, obtidas através de uma vida de estudo. Sou um desarmado David, apenas com o recurso da funda e de alguma pedra ao alcance da mão, face a poderosos Golias. Mas, a cavalo ou a pé, a minha guerra não é a deles. Os investigadores científicos sabem que, para tudo investigar, ou quase tudo, sobre um certo macaco – só um exemplo - é necessário ir viver com ele umas dezenas de anos para a sua ilha, em dedicação exclusiva. Isto é válido para qualquer outro especialista. Para se escrever sobre um autor tão complexo que até é vários autores, tem que se ter com ele uma íntima lidação. Não basta saber por alto – ser generalista. (Que me perdoem os médicos generalistas, que muito prezo. É que me estava a lembrar da história de um homem que entrou numa igreja com uma nota na mão, e andou de altar em altar, com a evidente intenção de a depositar nalguma caixa de esmolas. Ao vê-lo sair, sem fazer a doação, o padre precipitou-se e perguntou-lhe quem buscava. “Santa Luzia, informou, por mor dos meus olhinhos. Mas não existe aqui…”. O padre não desarmou: “ Mas vá ali à Nossa senhora de Fátima que é de clínica geral!”). Como muito bem diz Guerreiro, “um boticário” não pode fazer “um tratado de Química”. No âmbito das literaturas, reina a prática da clínica geral. Toda a gente se sente capaz de botar discurso, oralmente ou por escrito, sobre qualquer coisa.
Guerreiro atira-me duas flechas: a primeira porque “ao contrário de Teresa Rita Lopes”acha que P. sai imune do retrato sórdido que dele é feito nessa biografia. Aos olhos dos conhecedores, sim. Mas preocupam-me os outros, sobretudos os estudantes que consultarem para os seus exames os 650 exemplares oferecidos às bibliotecas escolares.
E acaba o seu artigo dando-me voz, em itálico, para me responsabilizar  pelos “delírios biográficos de Cavalcanti Filho”: cita o “depoimento” que o biógrafo me atribui, quando me foi conhecer e visitar – ele que não cita os meus livros  - em que eu lhe teria dito que, “caso tivesse obtido o cargo de conservador em Cascais ( a que se candidatou em 1932), teria provavelmente casado com Ophelia, é possível que tivessem sido muito felizes e até provável não que tivessem tido muitos meninos, mas que tivesse vivido mais anos e escrito mais livros”.
O Crítico reage cada vez que Ophelia é nomeada (curiosamente como Álvaro de Campos, que também abominava a pobre rapariga). Biógrafo e Crítico têm, aliás, em comum, uma obsessão: Ophelia. Não sou dada, como o Crítico, à psicanálise, porque não estudei essa matéria, mas vou mesmo inventar, para o Biógrafo, o complexo da Carochinha: sempre que nos textos de Pessoa aparece uma mulher à janela, ou tão só a janela, tem que vir Ophelia à baila! Guerreiro ironiza, com toda a razão, sobre a declaração do Biógrafo de que certo poema que fala duma janela evoca Ophelia e Pessoa, “passando por baixo da sua janela”. G. podia também ter referido, a propósito da carta-conto de uma corcundinha, Maria José, “que passa os dias à janela, a chorar o seu infeliz destino”, a aproximação feita por B. entre  Ophelia, à janela, e o “Senhor António”, seu platónico amor, que era serralheiro e assim se chamava, está-se mesmo a ver, por causa do Fernando António…(pp. 376-7, da dita biografia. Diga-se, de passagem, que chegavam estas duas páginas, com vários outros dislates, para fazer corar de vergonha as pessoas que têm apoiado, directa ou indirectamente, este livro). Curiosamente, a crítica de G. organiza-se em torno do tema da sexualidade, que Pessoa declarou a Gaspar Simões, em carta de 11.12. 1931, pouco lhe interessar (a própria como a alheia). O que B. diagnostica como sintoma de homossexualidade, G. pretende ser sadomasoquismo, e insurge-se contra a “ignorância teórica” de B. “quanto à sexualidade”, em geral. Ophelia volta à berlinda: B. atribui-lhe o que G. chama uma “conversão virtuosa”: com a chegada dessa rapariga, ficam ambos curados da sua homossexualidade, Pessoa e Campos. (G. não perdoa essa “conversão” e também não as “coisas absolutamente ofensivas” que B. diz sobre António Botto, que teria dado a conhecer “o reduzido tamanho do membro viril do poeta”.) Nisto não meto o meu bedelho, deixo o assunto para os especialistas, só direi que não percebo por que razão G. se indigna tanto com o facto de eu ter dito (na tal conversa), meio a sério meio a brincar, que, se P. tivesse tido o tal emprego, até, quem sabe, se teria casado com a Ophelia - etc, etc.
Ora P., segundo afirmações escritas em cartas, até encarou casar-se com ela, sim senhor. Que mal há nisso – em dizê-lo e em fazê-lo?
 Noutra carta a G. Simões, de 18.11.1930, Pessoa diz algo que, parecendo contrariar o que afirma na carta anteriormente referida, explica as turbulências poéticas de Campos, que B. diagnostica como manifestações homossexuais e G. sadomasoquistas: consistindo algumas manifestações da libido “num certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes  [através dos poemas “Antinous” e “Ephitalamium”] eliminá-los pelo processo simples de os exprimir intensamente.”
Convém que não esqueçam, tanto o Biógrafo como o Crítico, que Pessoa era capaz de tudo viver, até a sua sexualidade, por interposta(s) pessoa(s).    

terça-feira, 3 de julho de 2012

OS SEGREDOS DO ÊXITO DE UMA BIOGRAFIA PESSOANA

Teresa Rita Lopes

Tinha prometido aos meus botões e aos meus amigos não gastar mais cera com este assunto mas a aflição de que os 650 exemplares do livro em questão, oferecidos às bibliotecas das escolas, condicionem o saber e o sentido crítico dos estudantes que sobre ele se precipitarão para passar nos exames – têm todos Pessoa (P. daqui por diante) no programa – impele-me a rapar da pena. Igual obstinação teria se soubesse que a 650 cantinas escolares tinha sido oferecido um produto impróprio para consumo.
O texto do Dr.Cavalcanti Filho reproduz, no Público de 22.6., o que já escrevera no DN, a 2. 6. 2012, pseudo-respondendo ao que eu e o Richard Zenith tínhamos dito na entrevista que, na semana anterior, uma jornalista desse jornal nos fizera. Repete tudo: até a rábula de se armar em meu avozinho, comparando os seus cabelos brancos irradiando serenidade e sabedoria à cabeleira vermelha da jovem irreverente que ousa enfrentá-lo. Cresci um palmo. Quase me comprou. Tive a momentânea tentação de lhe elogiar o livro. Como é fraca essa “natureza humana” que ele menciona!
Aqui, como anteriormente no DN, o autor da biografia em questão (B.,daqui por diante), ocupa quase metade do artigo a falar de si. Às minhas objectivas críticas ao seu livro, aqui, a 25.5.2012, contrapõe os elogios recebidos das revistas e dos jornais brasileiros, assim como os prémios recebidos. E exibe os seus títulos de ex-ministro da justiça e de “membro da Comissão da Verdade” ,“designada pela Presidenta da República para reescrever a história do país”.  Sabendo porventura do meu passado de vítima da ditadura salazarista, o B. aproveita para mostrar que não é menos de Esquerda que eu. É verdade que tenho muita simpatia pela Presidente Dilma e muita confiança no futuro do Brasil. Só que a minha Esquerda é interior, não tem partido, apenas causas, e não me proporciona compadrios. E desconfio de qualquer investigação ideologicamente orientada, de Direita ou Esquerda. Só aceito a investigação que busca a verdade pura e simples, não condicionada por interesses pessoais ou partidários. Para recusar os erros que lhe aponto, o B. coloca-se na posição de ser rejeitado por razões de cumplicidade académica, pensando que esses que contestam o seu livro o fazem pelas mesmas razões que outros o promovem: por compadrio.  
 Faço votos para que seja mais fiel à Verdade ao fazer a história da Ditadura no seu país do que o foi a fazer as estórias que conta sobre o P. Porque compôs uma biografia a partir das estórias (sem h e sem verdade) que lhe foram contando os que lhe venderam esses objectos que colecciona com paixão. (Não nomeio o historiador e o jornalista que “contratou, em Portugal, para colaborar no texto” porque não diz quem são nem que parte tiveram na obra.) A autenticidade dessas estórias é a mesma que a dessa máquina de escrever e secretária que comprou recentemente e os netos do seu possuidor já vieram declarar que P. nunca delas se acercou. Diz o B. que o Sr.Martins, antiquário da Biblarte, que lhe vendeu muitas das suas curiosidades pessoanas, é que afirma que o Pessoa aparecia, a cair de bêbado, para escrever, a troco de 20 escudos à peça, os poemas que o Eliezer Kamenezky publicou em livro! Qualquer leitor com um mínimo de sentido crítico, o que não tem que ser o caso desse comerciante, perceberá que P. não poderia ter escrito um único dos indigentes versos do livro Alma Errante! Os fortes argumentos que o B. apresenta para as suas estrambóticas afirmações são todos deste jaez: os versos são do Pessoa porque o antiquário que o forneceu de objectos pessoanos o diz, e o Pessoa esteve para casar com a filha da lavadeira porque ela ou alguém por ela lho terá contado – e quem ousará pôr em dúvida fontes tão fidedignas? B. afirma que a académica que sou refuta as suas afirmações porque não possui os objectos e as  informações que ele tem coleccionado.  Um coleccionador não deve subir acima das suas colecções. Seria útil à comunidade fazer com elas um museu – com as autênticas! -, não este livro.
Diz o B. que teve um “momento mágico” – o seu “dia triunfal”, como o do P. quando os heterónimos se manifestaram -  quando percebeu que o nosso Poeta não tinha imaginação: limitava-se a copiar, para a obra, os factos da sua vida real. Exemplo: Álvaro de Campos assim se chamou porque P. tinha um dentista com esse apelido, e era engenheiro naval porque um genro da sua tia tinha essa profissão. E o seu poema “Tabacaria” só lhe aconteceu porque havia em Lisboa uma tabacaria que o inspirou, e ele indica qual é, (quantas tabacarias haveria então em Lisboa!) e até explica que o Esteves aí mencionado era seu vizinho, o mesmo que, quando morreu, lhe foi declarar o óbito. E sem estas preciosas informações ninguém entenderá esse poema – pretende o B. Se eu remeto muitas vezes para o Álvaro de Campos o gáudio de contar estas estórias de vizinhas linguareiras é que tudo isto parece uma rábula do nosso saudoso Raul Solnado (mas estou a ver os nossos estudantes a repeti-las nas suas composições).
Podemos perguntar-nos por que razão o B. transformou a discreta figura de P. numa caricatura de telenovela. Responderei: porque esse gentleman não fornecia estórias palpitantes para uma biografia de 700 e tal páginas. Diz que quer “conhecer a pessoa de P.” mas só lhe inventa aleijões (como “o desastre do físico”, a ausência de virilidade do membro viril, o porte cambaleante do bêbado crónico, com delirium tremens),   não fala de coisas importantes: da relação de P. com o Pai, que, ao contrário do que diz, esteve presente na sua vida, sim senhor, nem de outra relação determinante, essa com a família de Tavira, de “fidalgos e judeus” (disse P.) que não só lhe inculcaram o espírito republicano e anticlerical que sempre o animou como o introduziram na vida profissional, ao montar a “Empresa Íbis”. Também não fala da importância, para o autor de Mensagem, desses “fidalgos” seus antepassados de que desenhou o brasão com que mandou fazer um anel – não por prosápia, como B. pretende, mas porque fez dele um símbolo de pertença a esse povo de “navegadores e criadores de impérios” de que se orgulhava de descender. Mas para o B. tudo isto é mania das grandezas, como essa que inventou do P. ter a ambição de ganhar o Nobel.    
Diz o B. que da obra não fala. Mas fala, fala! - e como fala! A começar pelo dislate dos heterónimos que divide em 3 categorias, uns com asterisco, outros sem ele, mas contando todos para o resultado final, que apresenta: “somaria 207 nomes” (p. 396 ; na edição brasileira: p. 402). Diz que para isso usou os meus critérios. Se o B. não percebe os critérios de P. para a atribuição do estatuto de heterónimo, como esperar que entenda os meus? Se não atina com o que é um heterónimo, como esperar que os saiba inventariar? E mente conscientemente quando diz que escrevi as “primeiras críticas” sem conhecer o livro porque só o obtive da editora quando me pediram a crítica para o Público. Ora o B. sabe bem que me enviou há um ano um exemplar, dedicado, da edição brasileira, essa que citei na minha segunda crónica, (no blogue do meu Instituto: www.patrialinguaportuguesaiemo.blogspot.com). Quando o Público me solicitou uma crítica, (publicada a 25.5.2012) pediu efectivamente, para mim, à Editora, a edição portuguesa, que me foi enviada. O B. controla tão de perto o destino da sua obra que até tem informadores a vigiar os críticos – processo que deve fazer parte da bem montada operação com que tem obtido para o seu livro os êxitos que assinala. (Felizmente não teve poder para impedir a publicação da crítica que o Público me solicitou. Ainda não chegámos a isso.)
Massacra aqui o B. mais uma vez os leitores com as estórias do Padre Mattos e do C.Pacheco. Remeto-os para as minhas anteriores respostas, no dito blogue. Mas bastaria arrumar o assunto assim: o Padre Mattos, tivesse ou não existido, foi alguém referido num poema satírico, em tempos de monarquia agonizante, num jornal manuscrito pelo jovem P. O nosso B. não pode chamar heterónimo - o que, no livro, faz sistematicamente - aos nomes próprios por P. referidos nos seus textos. Não são um eu que fala mas um ele, de quem se fala. Para cúmulo do disparate, B. pretende que este nome é inspirado pelo do médico Júlio de Mattos (p.380), a quem passa a chamar também heterónimo! (Valha-nos o Dr. Júlio de Mattos! ) Quanto ao C.Pacheco , já provei à saciedade que existiu  e escreveu o poema “Para Além d’ Outro Oceano”, de que deixou vários rascunhos, com passagens inéditas, e vários outros poemas, de que reproduzi alguns no Jornal de Letras e na revista Modernista (e remeto igualmente o leitor para o dito repositório das minhas anteriores intervenções). E não venha o B. repetir que o Pessoa costumava usar o nome dos amigos como heterónimos – assim os contabiliza na sua lista! Nem que o P., no fim da vida, até se deixou de heterónimos, queria era fazer um grande livro só por ele assinado! Será que B. não sabe que P. escreveu até à morte em nome de Campos, de Reis e de Soares? Se não sabe…- apetece-me repetir a frase célebre de um conhecido monarca a um político sul americano.
 A verdade é que ninguém se pode fiar no que B. escreve: deturpa não só a vida de P. mas a biografia (ficcional) dos heterónimos, atribui erradamente os textos citados (quando atribui, o que em geral não faz), estropia compulsivamente textos e títulos, e vai ao ponto de inventar um título para um poema que o não tem, para o fazer dizer aquilo que lhe convém. Só um exemplo deste último abuso (p.405): no capítulo “Pessoa e o Brasil”, cita um poema ortónimo de 1931, sem título, (como se pode verificar no fac-símile do poema) que refere “Catullo”, o poeta latino e não o da Paixão Cearense, como o B. diz. Mas o B. não hesita, para se dar razão, em inventar um título ao poema, “Catullo da Paixão”, que cita, como se fosse atribuído por P.! Chama-se a isto, em qualquer língua do mundo, falsificar um documento. Espero que na Comissão da Verdade, para que foi nomeado, não use estes métodos.

Publicado no Público
(29.06.2012)


domingo, 17 de junho de 2012

O COLECCIONADOR CONTRA OS ESPECIALISTAS

Teresa Rita Lopes

Numa coisa estamos perfeitamente de acordo, o Dr. Cavalcanti Filho – autor da biografia pessoana em causa, a quem vou passar a chamar B., como é uso nos jornais, para poupar espaço – e eu, a dama dos “cabelos vermelhos”, como B. me descreve, acrescentando a lisonjeira censura de que eu uso uma “linguagem pouco académica, juvenil quase”: não queremos, ambos, perder mais tempo com isto -  ele, por não ter visivelmente argumentos, como a sua resposta ao DN, de 2 de Junho, claramente mostra, eu, porque criticar um livro em que os erros pululam em cada página – e são mais de 700! – é como matar à palmada uma nuvem de mosquitos. O Álvaro de Campos diz-me que também já tem a sua conta.
Todas as críticas que tenho feito ao livro de B. poderiam ter sido escritas há mais de um ano, quando recebi a edição brasileira, cortesia do autor. Mas não quis hostilizar um concidadão da “pátria língua portuguesa”, com que Pessoa sonhava pensando sobretudo no Brasil – até assim se chama um blogue do meu grupo de estudos pessoanos – onde têm sido publicadas as minhas críticas “ortónimas” e as que tenho atribuído ao Álvaro de Campos, heterónimo que, há muito, peço emprestado ao Pessoa para variadas militâncias pessoanas ( http://www.patrialinguaportuguesaiemo.blogspot.com/ ) . Ortonimamente assinei a que foi publicada no Público, a 25 de Maio, e as que exprimi em entrevista à jornalista do DN, Joana Emídio Marques, a 26 – às quais o B. responde a 2 de Junho e eu, por meu turno, vou reagir. Como não teria paciência para criticar, na minha própria pessoa, as centenas de dislates que o livro veicula, tenho dividido a tarefa com o Campos. E essa tarefa impôs-se-me, só agora, com a edição portuguesa, perante a aparatosa divulgação que dela tem sido feita, com oferta de 650 exemplares às escolas de um livro que está – peso o que digo – impróprio para consumo. Já o provei longamente em críticas já feitas, consultáveis no blogue citado, não teria para elas espaço neste artigo.    
Começa B. por dizer que é “um livro para não iniciados” o seu. Esse o risco. Os “iniciados” dão-se imediatamente conta das suas falsidades e confusões de toda a espécie. Riem-se ou indignam-se. É com os incautos não vacinados que eu me preocupo. Com os que ouvem falar de Pessoa, tanto, e deste livro também, e se precipitam para o comprar. Mas sobretudo, ah sim! preocupam-me os meninos das escolas, que têm todos Pessoa nos programas e recebem de bandeja a “bíblia” – editado pela Editora dos seus  manuais escolares – que lhes vai abrir as portas da passagem nos exames. 
Diz o B. que da obra não fala (antes não falasse mas fala, infelizmente fala, e de que maneira!): “tentei mostrar o homem”. E mostra esse “pobre homem” (p.623), louco (“esquizóide”etc, segue-se o diagnóstico completo p.621), com amigos “da rua”, o bêbado (“é cada vez mais comum vê-lo bêbado” p.636), homossexual não assumido, impotente por ter sido mal dotado pela natureza (afirmação frequente), esse visionário pretensioso (“aos poucos vai tendo visões grandiosas”, p. 538), pelintra mas vaidoso, veste-se e calça-se nas lojas caras e ostenta anel de brasão. E usa lentes com menos dioptrias “por vaidade” (não há pachorra para continuar a discutir dioptrias!). Ah! e sonha com o prémio Nobel (é uma obsessão do B.). Se este retrato fosse verdadeiro, era, paciência. Embora eu acrescente que escrever um livro sobre essa “verdade”, sem ligar à obra, como diz ter feito, não interessaria. Mas a verdade é que é mentira. Já antes o provámos, eu e o Campos, mas tenho, nas minhas notas, inéditas, muitos disparates por denunciar! Diz B. que escreveu o livro que queria ler e não existia. Proveito lhe faça! Guarde-o para si, não partilhe com os outros as suas perversas fantasias (porque identificar-se com esse “pobre homem”, de “triste figura”, podre de vícios e de defeitos, de forma a dizer que escreveu uma “quase autobiografia”, que outra coisa pode ser?).
Mas que diz de novo esse livro que era preciso existir? As inverdades que já denunciei e outras para que não tenho hoje aqui espaço (como o Pessoa e a Mãe serem ateus, ele quase não ter tido contacto com o Pai). Que o P. tinha um pénis diminuto era o A.Botto que dizia, despeitado porque o P. nunca lhe deu trela. Ah! mas revela os nomes da lavadeira Irene e sua filha Guiomar, e que Pessoa esteve para casar com esta última! (E as provas?) E o que já sabíamos há 17 anos, escrito em livro que B. não nomeia: que Pessoa morreu de pancreatite aguda (o delirium tremens revelado é falso). E que P. se abastecia numa sapataria cara que ou se chamava Contexto ou Contente. E que Ophelia velou, às escondidas, o corpo de Pessoa. Também que dos 55 indigentes poemas publicados em Alma Errante, de Eliezer Kamenezky, 37, ao menos, são de P.!  
Quanto aos “Heterónimos” (de que, afirma, Kamenezky passa a ser mais um!), capítulo de que tanto se tem ufanado, perante as críticas que eu e o Campos lhe fizemos já diz que não tem importância, que o Pessoa no final da vida decidiu abandoná-los a todos e escrever só um “livro grande”, por ele assinado – para assim ganhar o Nobel…Várias falsidades numa só afirmação, e todas porque o B. não entende o que P. escreve aos discípulos da revista presença sobre os seus planos, nem a sua ironia sobre o Nobel. (Quem não entende o que P. diz, como pode fazer-lhe a biografia?) Como pode o B. ignorar que P. escreveu em nome de Campos, Reis e Soares até aos seus últimos dias?
Diz ainda que o deturpo porque verdadeiros heterónimos são só (!) 127, os outros não trazem número mas só asterisco – mas contam todos para o resultado final: “somaria 207 nomes” (p.396, é o B. quem faz as contas!). Ah! e diz que usou o critério da “eminente professora Teresa Rita Lopes, em seu livro fundamental, a todos os estudiosos, Pessoa por Conhecer”.  Se o B. não atina com o sentido do que P. escreveu, como esperar que entenda o que eu escrevi – isto é, que as “personalidades literárias” que recenseei , 69, mais os 3 verdadeiros heterónimos (só 3, Pessoa frisou) são os que assinaram um texto literário. O B. pôs na sua lista 127 “verdadeiros heterónimos”, diz, mais 75 assim-assim, mais 4, segundo vários autores (que ele também não percebeu o que queriam dizer): António Botto, D. Sebastião, Sá-Carneiro, Ofélia Queirós (“anti-heterónimo”)! E acrescenta que “nestes cálculos deveria também estar Elieser Kamenesky” (p.395)!
Quanto à existência real do Padre Matos e José Pacheco é tal a baralhada que estabelece, neste artigo como no livro, que remeto para o que já a esse respeito disse,
não tendo aqui espaço para o fazer. Reparemos só que um dos seus fortes argumentos, no DN, a favor do poema de José Coelho Pacheco ser de Pessoa, é “o facto de falar, o poema, de rebanhos de ovelhas – semelhantes aos do Guardador, de Caeiro.” O B. acrescenta outras pérolas, que não cabem neste cofre. Desminto ainda a afirmação gravemente falsa de que P. se aproveitou “numerosíssimas vezes” do nome dos amigos “para os nomear seus heterónimos”. Sim, o B. contabiliza alguns na tal lista mas por sua disparatada iniciativa.   
 A tese do B. é, afinal, que sabe mais coisas que os “especialistas” porque tem documentos que eles não conhecem. Terá que os dar a conhecer, se quiser que o creiam! Diz que “teve em mãos o dito jornalzinho, escrito pelo próprio Pessoa”, em 1902. Só podia ser A Palavra (que reproduzi em Pessoa por Conhecer). Diz ainda que tem “uma diferença com os especialistas, em Portugal. Que nenhum destes jamais teve curiosidade em saber de que tratavam as duas cartas de Ofélia”, que a família desta não permitiu fossem publicadas pela sobrinha de Pessoa, ao editar essa correspondência. (Por acaso, tenho fotos de todas – que a irmã de Pessoa me permitiu tirasse!) Afinal, re-confessa (já o dissera ao semanário Sol) não encontrou lá notícia do “aborto” que, estranhamente (dadas as incapacidades que atribui a Pessoa) aí esperava encontrar, mas apenas da “doença mensal” das senhoras! Ai estes “especialistas” que, sem posses para comprar as ditas cartas, ficaram sem saber que a Ophelia tinha a tal “doença mensal”! Quanto ao livro que a Ophelia trouxe das mãos do Pessoa já cadáver, na posse do B., só prova que alguém o obteve e lho deu ou vendeu. Mas como o adquiriu? O Richard Zenith vai contar essa estória noutro sítio…
O cerne do problema é que o B. pensa que ter comprado todos esses pertences do Pessoa (ou a ele atribuídos) lhe dá a autoridade de saber mais sobre ele que os pelintras dos investigadores, sem poder de compra para os coleccionar, obrigados a contentar-se com o Espólio pessoano da Biblioteca Nacional! Se assim fosse, teria que revelar esses preciosos documentos, Sr. B.! Pela minha parte, e como homenagem à irmã de Pessoa, Henriqueta Madalena Caetano Dias, lembro que frequentei o Espólio ainda em sua casa, e outros mini-espólios ainda nas mãos dos seus possuidores (os tais jornalecos A Palavra, feitos à mão pelo jovem Pessoa de 1902, na casa do primo Eduardo Freitas da Costa – onde não havia, não senhor, nenhum “Padre Matos!) que reproduzi no Pessoa por Conhecer, citado pelo B., e também nos catálogos de 2 exposições que organizei, itinerantes em Espanha e no Brasil, censuradas em Portugal…mas isso é já outra estória!). Se o B. possui documentos que desconheço, porque não colecciono, só investigo, gratíssima lhe ficarei se os der a conhecer, e pode estar certo que o citarei, coisa que ele não faz com as fontes em que se abebera.
Os argumentos com que o B. rebate as críticas feitas ao seu livro, que ocupam as primeiras duas colunas do artigo no DN, são uma lista dos êxitos por ele obtidos no Brasil, nos jornais e na net (tudo ali bem contabilizado!) e também dos prémios concedidos. (Isso prova, sobretudo, o apreço que os brasileiros têm por P. – e também talvez outras coisas menos bonitas de que não seria bonito falar…)“Já em Portugal” diz ele, “a do público, a quem o livro se dirigia, muito boa”. O problema é com “os especialistas”, a quem o livro se não dirige…E a esses tenta arrumá-los com o seu título de membro da Comissão da Verdade, nomeado “pela Presidenta da República”, para “reescrever a história do país, nos anos de chumbo, recentes…”. Faço votos de que se desempenhe dessas funções com maior fidelidade à Verdade do que a praticada nesta biografia de Pessoa.

Publicado no Diário de Notícias
16.06.2012

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Teresa Rita Lopes recebeu nova comunicação de Álvaro de Campos – que se apressa a dar a conhecer

Biogr. Kamenezky

Teresa Rita Lopes recebeu nova comunicação de Álvaro de Campos – que se apressa a dar a conhecer.

A revelação-mor da sua “Quase-autobiografia” pessoana, faz questão de realçar Cavalcanti Filho, é a de que Elieser Kamenezky é um novo heterónimo de Pessoa, a acrescentar ao de José Coelho Pacheco e Padre Matos, entre outros que inegavelmente existiram como António Botto e Mário de Sá Carneiro e – revelação ofuscante! – D.Sebastião! 

No prefácio que fez ao livro de poemas de Eliezer Kamenezky, Alma Errante, em 1932, o Fernando tem o cuidado de aconselhar o leitor a que os leia “sem Grécia, isto é, sem estética nem metafísica” nem “preconceitos estéticos” porque “são infantilmente sinceros – têm uma poesia própria, independente da poesia que é propriamente poesia”.  Está tudo dito: não são poesia a valer. Jamais Pessoa assumiria qualquer dos seus versos. Que papel terá tido nesse livro? A rogo do judeu russo, seu amigo - que estaria tão empenhado em legar livros à posteridade como o nosso Biógrafo a decisiva biografia de Pessoa! – ter-lhe-á passado os poemas à máquina, limpando-os dos seus erros ortográficos e outras muitas impurezas mais evidentes: por isso alguns ficaram no espólio pessoano, o que não é prova que Pessoa os tivesse escrito. (O Fernando costumava fazer cópias do que escrevia à máquina.) Também lá está o romance que Kamenezky quis publicar, Eliezer – o papel que nisso teve o Fernando é coisa para meditar, não aqui – e isso não quer dizer que seja de Pessoa. (Que o judeu russo lhe pagou por essas colaborações, como acusa indignadamente o Biógrafo? Porque não, se ele podia e o Fernando precisava? Pensa que ele nadava em dinheiro, como o Sr.?)

Jamais da pena de Pessoa sairiam “infantilidades” -  assim por ele consideradas no prefácio - como os versos de Alma Errante. Pequenos exemplos:

Como uma borboleta voa /Atrás de outra, no ar,/Assim eu vou atrás de ti,/

Dias e noites, com o meu pensar.

Outra infantil “sinceridade”:

Quem ama e não encontra o seu ideal /É tão infeliz, e desgraçado, /
Como eu…

Dou ao Biógrafo, de borla, esta sugestão: a certa altura, uma voz feminina responde ao amado com estes esplêndidos versos: “Querido, os teus versos são pétalas / Da tua alma sofredora./ Cada uma encerra o aroma / Da tua alma sonhadora.” Mais um heterónimo neto do Fernando:  heterónimo feminino do heterónimo Kamenezky…

O Biógrafo prova definitivamente a sua atribuída autoria invocando o final do poema (em que o Poeta se dirige à amada, “esculpida com persistentes marteladas / No mármore vivo da minha dor / E do meu sofrimento”) em que ela se põe a tocar Beethoven, Chopin e Mendelssohn e não músicas lá da sua terra, Kalinkas e coisas assim…  (Já agora , fique sabendo que Mendelsshon era judeu!) Que o Sr. acredite que essa máquina e a secretária que acaba de comprar pelo preço de um apartamento eram do Fernando, é lá consigo, mas que queira atribuir-lhe esses versos indigentes é que já é connosco…Na sua ânsia de revelar o verdadeiro e ainda oculto Pessoa, inventa heterónimos que nunca existiram como tal ou que foram gente de verdade e, opostamente, tenta desatribuir obras, como o Guia de Lisboa que já está provado por quem sabe e pode fazê-lo que saiu mesmo da pena do Fernando… Não suba o coleccionador acima das suas colecções… 

Mas olhe: por si até tenho simpatia, como por todos os coleccionadores. (Até lhe direi ao ouvido onde pode adquirir o urinol que retiraram do Martinho da Arcada de que – ah isso com certeza! – o Fernando se serviu muitas vezes!) A quem eu não perdoo é às figuras mais ou menos públicas que têm promovido os seus irresponsáveis dislates.

Álvaro de Campos, pela pena de Teresa Rita Lopes

quinta-feira, 31 de maio de 2012

A verdadeira história de Eliezer Kamenesky

No blog consagrado a António Quadros encontramos uma crítica ao livro Fernando Pessoa uma Quase Autobiografia de Cavalcanti Filho intitulada A verdadeira história de Eliezer Kamenesky. Apresentamos abaixo o texto publicado no blog http://antonioquadros.blogspot.pt/, para o qual remetemos os leitores que queiram acompanhar as notícias que aí forem sendo publicadas.   


A verdadeira história de Eliezer Kamenesky
 
 
 
Diz Cavalcanti Filho, que a sua grande descoberta ao escrever esta obra, não foram (como seria de supor) as dezenas de novos heterónimos que enumerou, mas sim a verdadeira história por detrás da poesia de Eliezer Kamenesky. Julga-se que Fernando Pessoa, que em 1932 prefaciou o livro de poemas Alma Errante do escritor russo, ajudou também na preparação da publicação desta obra.
Cavalcanti vai mais longe, dir-se-ia, vai longíssimo: segundo o que escreve, Fernando Pessoa não só ajudou Kamenesky a publicar Alma Errante, como lhe escreveu vários poemas (pelo menos 37 em 55), o que o leva, na passada, a dizer que Kamenesky é mais um heterónimo de Pessoa. Haverá salto maior do que este num livro que levou 8 anos a preparar com a ajuda de dois investigadores em Portugal?
De que forma é que Cavalcanti Filho chega a estas conclusões que seriam interessantes, sem dúvida, para todos nós...?, com base no que o sr. Martins, actual proprietário de um antiquário em Lisboa lhe contou, depois de uma conversa, imediatamente a seguir a Cavalcanti lhe comprar os óculos de Fernando Pessoa, mais a bengala que o poeta nunca usou e o resto que ali estava à venda.
Vai daí, que a sua maior descoberta não passa de uma remota hipótese, para não dizer boato, depois de fechar um negócio, e nós ficamos na mesma, a achar que estas 700 e tal páginas não correspondem ao que o autor promete.
Entre outras coisas, a saber: promete os heterónimos (127 + 75...), promete devolver Coelho Pacheco a Pessoa (Coelho Pacheco é Coelho Pacheco, de carne e osso e poeta também, como provou Teresa Rita Lopes), promete Kamenesky da forma que vimos, promete tudo acerca da vida de Pessoa e da sua ascendência (fidalga e judaica?) e da sua homossexualidade, e das suas diopetrias, (verdadeiras, indispensáveis e interessantíssimas revelações) tudo isto a culminar, na ideia de que, afinal, Fernando Pessoa "não tinha imaginação", apesar de todos suspeitarmos que, pelo menos, tinha alguma.
A páginas tantas, quero dizer, a páginas todas, chegamos à conclusão que não saímos do mesmo sítio, mas que foi uma longa caminhada. Saímos ainda com a certeza, ao fecharmos a obra, de que o verdadeiro estudo sobre Pessoa está na mesma, isto é, em curso, mas noutros lugares, não aqui, apesar do
aparato.
 
Diz Cavalcanti Filho, que a sua grande descoberta ao escrever esta obra, não foram (como seria de supor) as dezenas de novos heterónimos que enumerou, mas sim a verdadeira história por detrás da poesia de Eliezer Kamenesky. Julga-se que Fernando Pessoa, que em 1932 prefaciou o livro de poemas Alma Errante do escritor russo, ajudou também na preparação da publicação desta obra.
Cavalcanti vai mais longe, dir-se-ia, vai longíssimo: segundo o que escreve, Fernando Pessoa não só ajudou Kamenesky a publicar Alma Errante, como lhe escreveu vários poemas (pelo menos 37 em 55), o que o leva, na passada, a dizer que Kamenesky é mais um heterónimo de Pessoa. Haverá salto maior do que este num livro que levou 8 anos a preparar com a ajuda de dois investigadores em Portugal?

De que forma é que Cavalcanti Filho chega a estas conclusões que seriam interessantes, sem dúvida, para todos nós...?, com base no que o sr. Martins, actual proprietário de um antiquário em Lisboa lhe contou, depois de uma conversa, imediatamente a seguir a Cavalcanti lhe comprar os óculos de Fernando Pessoa, mais a bengala que o poeta nunca usou e o resto que ali estava à venda.

Vai daí, que a sua maior descoberta não passa de uma remota hipótese, para não dizer boato, depois de fechar um negócio, e nós ficamos na mesma, a achar que estas 700 e tal páginas não correspondem ao que o autor promete.
Entre outras coisas, a saber: promete os heterónimos (127 + 75...), promete devolver Coelho Pacheco a Pessoa (Coelho Pacheco é Coelho Pacheco, de carne e osso e poeta também, como provou Teresa Rita Lopes), promete Kamenesky da forma que vimos, promete tudo acerca da vida de Pessoa e da sua ascendência (fidalga e judaica?) e da sua homossexualidade, e das suas diopetrias, (verdadeiras, indispensáveis e interessantíssimas revelações) tudo isto a culminar, na ideia de que, afinal, Fernando Pessoa "não tinha imaginação", apesar de todos suspeitarmos que, pelo menos, tinha alguma.
A páginas tantas, quero dizer, a páginas todas, chegamos à conclusão que não saímos do mesmo sítio, mas que foi uma longa caminhada. Saímos ainda com a certeza, ao fecharmos a obra, de que o verdadeiro estudo sobre Pessoa está na mesma, isto é, em curso, mas noutros lugares, não aqui, apesar do
aparato.

António Quadros Ferro

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Incompreender Pessoa - Teresa Rita Lopes

Se deixassem este livro ser apenas aquilo que é, obra de um apaixonado coleccionador de estórias, não aceitaria o pedido do Público para o criticar. Recebi a edição brasileira há mais de um ano e nem eu nem o Álvaro de Campos nos manifestámos então. Sou militantemente cidadã da pátria língua portuguesa e gosto de gostar do que os nossos concidadãos brasileiros produzem. Mas a obra adquiriu tal difusão, oferecida até pelo autor às bibliotecas escolares deste país, que curvei-me ao dever de me manifestar.

Os que aplaudem, leram? As 710 páginas? Eu li. Quantos desses poderão silabar estas 4 letras?

Como tantos falam de Pessoa dele sabendo tão pouco, este "simples guia para não iniciados" (p.13), arrisca-se a modelar o saber de incautos e incultos leitores. Essa a questão. Mas como explicar que a festejada "quase autobiografia" se aplique a dar do biografado este deprimente retrato do bêbado louco megalómano, aspirante ao prémio Nobel (p.177, 465)), que ia cozer as suas bebedeiras na cave da loja do judeu russo para quem fabricou poemas a troco de uns trocos, incapaz sexualmente por ter sido mal dotado pela Natureza, mas "pretensioso", exibindo anel de brasão, "vaidoso", vestindo-se e calçando-se nas lojas mais caras e elegantes, quase cegueta mas não usando lentes grossas por lhe fazerem os olhos pequeninos…? Para continuar a compor o retrato do pobre diabo - de "triste figura", diz - o Biógrafo inventa-lhe "amigos de rua"(p.163): bêbados, pedintes, loucos, arruaceiros. (E as provas disso?) Espanta-se que P. não tivesse "amigos importantes", "alguém com posses; um remanescente da nobreza", "um político republicano", um académico, um "empresário de peso". Só "párias", lamenta. E afiança: "Pessoa chegou mesmo a pensar em casar"com a filha da lavadeira (p.281)! No balanço dos "heterónimos"(p.396), lastima, de novo, a ausência de um " membro da nobreza" (ignora o Barão de Teive e Vicente Guedes). Mesmo que tudo isso fosse verdade (e não é), eu continuaria a perguntar-me porquê essa obstinação em avacalhar a imagem do seu ídolo. É caso para expôr a essa junta médica convocada para autopsiar P. que lhe permitiu anunciar triunfalmente o que, há 17 anos, o Dr. Francisco Fonseca Ferreira escrevera em livro: pancreatite aguda.

A verdade é que nunca ninguém viu P. bêbado nem com delirium tremens (repare-se na firmeza da letra) nem tresloucado. O B. julga-o segundo os seus valores e dá-lhe lições de moral além-túmulo. Não entendeu a grandeza desse "doido", desse "infeliz" (assim o trata) de quem Casais Monteiro, seu discípulo, disse que foi o homem mais livre que conheceu. Não entendeu que P. pagou toda a vida o preço dessa liberdade: permanente penúria económica, ausência do palco dos sucessos sociais, solidão irremediável porque os altos destinos cumprem-se sempre a sós.

Apetece perguntar: se o biografado é esse pobre diabo, porque não se ficou pela obra? Vendo bem não teria sido melhor porque este livro é uma montagem de textos pescados a esmo, de P. e seus "outros", mas sem atribuição, tudo misturado com a prosa do B. que quis – ingenuamente o declara - imitar o estilo de P. Aqui e ali introduz, sempre sem dar o seu a seu dono, afirmações alheias. Ficamos assim a braços com uma tremenda amálgama de citações - estropiando, inúmeras vezes, não só palavras mas frases inteiras. Resulta um "coquitéu" (como dizem os brasileiros) com pedaços de poemas, que cita como prosa e mistura com outras prosas que não diz de quem são. Chama-lhe, às vezes, "coleta" (p.166). Ao atribuir alguns textos, erra: por ex., p.227: não são de Campos, os versos da epígrafe, mas do ortónimo; p.246: o "epitáfio" é poema de Caeiro, não de Pessoa; p.652: o poema é do ortónimo, não de Campos! E até erra títulos de livros. E também as datas. Erra e baralha um pouco tudo, por todo o lado. Não cita as suas fontes por serem muitas, diz, mas compraz-se em notas quilométricas, tipo entradas de enciclopédia ou curiosidades de almanaque, que invadem também o corpo do texto.

Também não são de fiar as informações biográficas. Quanto à ascendência de "fidalgos e judeus" que P. disse ser a sua, são muito mais que dois! Interpretando como basófia o orgulho de P. nessa ascendência, o B. nunca poderá entender a Mensagem, em particular, e o seu autor, em geral. O profundo sentimento de ter uma missão a cumprir, como "criador de civilização", "estimulador de almas", vem-lhe de longe, quando, em Durban, se apercebeu do que chamou a nossa "descategorização civilizacional", e decidiu traduzir Os Lusíadas e escrever sobre Vasco da Gama. Sentir-se ligado por laços de sangue à velha cepa lusitana correspondia à sua busca de "quem sou", antecedendo "a busca de quem somos", de Mensagem. Até o guia de Lisboa, de cuja autenticidade o B. duvida – sem fundamentos nem argumentos - foi escrito como parte de um amplo projecto, que o nomeia, para dar a conhecer ao mundo o nosso património cultural.

É insignificante o que nos diz sobre a família de Tavira, cujo contacto, reatado desde o primeiro regresso a Portugal, em 1901, foi decisivo para a assumpção da sua identidade como detractor da Igreja de Roma, carrasca dos seus antepassados judeus, e até para a sua entrada na vida adulta, em 1909,como editor da Empresa Íbis em que essa família o ajudou a lançar-se, angariando-lhe como primeiro (e único) trabalho, junto de correligionários seus, republicanos, maçons e anti-clericais, a edição de um jornal algarvio, "republicano radical", de Loulé. O "livre pensador" que um tio avô, Jacques Cesário Pessoa, ainda hoje declara ser numa lápide do cemitério de Tavira, cedo se lhe impôs como exemplo.

Quanto à Mãe: é falso que não fosse "religiosa" (p.27), o que seria estranho numa família açoriana de tradição católica. (Será por isso que faz P. "ateu"?) Não só o baptizou como, em Durban, o inscreveu numa escola católica de freiras irlandesas, onde fez a Primeira Comunhão. E o seu verdadeiro primeiro poema, a ela dedicado, é uma engenhosa paráfrase da Avé-Maria. Além disso, ensinou-o a rezar: pela boca de Campos, fala, num poema, da sua "infância que rezava".

Quanto ao Pai, também não é verdade que não tenha tido verdadeiro contacto com o filho ("que poucas vezes viu", diz p.48). O B. reproduz a foto do maço das cartas que ele enviou à Mãe, durante os meses em que se ausentou para tratar a tuberculose, mas não as leu (e até já foram publicadas). Aí teria sabido que o "Fernandinho" tinha ido para essas termas de Caneças com a avó materna e o pai, que dele fala nas cartas. Se um ano antes, com 4 anos, a criança-prodígio já lia e escrevia - como diz - guardou seguramente na memória essa relação a que só a morte pôs cobro.

Também não é verdade que a tia-avó Mª Xavier Pinheiro fosse a velha tonta "conhecida por escrever lamentáveis poemas românticos e viver cantando canções de amor" (p.45). Como sempre, sacrifica a verdade às anedotas em que se compraz. Pelo contrário, o sobrinho-neto, com quem longamente conviveu, tinha-a em grande estima e na nota biográfica que fornece a Côrtes-Rodrigues cita mesmo, por inteiro, um poema dela. Muitas outras notícias não são verdade mas não tenho aqui espaço para as (d)enunciar. Até as biografias fictícias dos heterónimos têm erros: diz de Reis que é "judeu português"( p. 230, e repete p. 253) , de Campos que é "pagão", acrescentando que Pessoa é "ateu" (p.230) – esta nem lembrava ao Diabo!

A jóia da coroa do livro é o capítulo sobre os 127 "heterónimos" puro sangue, mais 75 que, embora não "considerados verdadeiros heterónimos", entram na conta; "sem contar" – mas vai contando – "os 5 personagens reais", "o que somaria 207 nomes"(p. 396)! Para começar, não sabe o que heterónimo quer dizer: Fernando Pessoa, Fernando António e F. Nogueira Pessoa contam na lista como 3 heterónimos! P. explicou que heterónimos são só 3, Campos, Reis e Caeiro, os únicos com vidas e estilos próprios, interagindo uns com os outros, sendo os demais autores de textos literários, "personalidades literárias". Na sua sôfrega caça, o B. até contabiliza assinaturas casuais em livros ou papéis soltos a que P., estudioso de grafologia, se aplicava: ex.:Jerome Gaveston, de que Saveston é variante, (contam ambos na lista!). Também contabiliza (n.º108) assinaturas em livros alheios! Outro erro é listar pseudónimos ocasionais, que P. inventou às dezenas, para efeitos jornalísticos: Tagus e J.C.Henderson Carr ganharam prémios com charadas, em Durban, no jornal local. Este último, reduzido às iniciais, conta 2 vezes! Pseudónimos de charadistas, ocasionais colaboradores dos jornalecos que, na sua juventude, inventou, A Palavra e O Palrador, são às dúzias (Lili, Pip, Rabanete, Pimenta, Gee…).Contabiliza também os "funcionários": directores dos jornais e suas secções. E os pseudónimos "Um irregular do Transepto" e "Um Sonhador Nostálgico do Abatimento e da Decadência" - assinando, em 1934, um artigo para o jornal A Voz e, em 35, sátiras contra Salazar. (O pseudónimo esconde uma identidade, o heterónimo revela-a!) Muitos são apenas nomes casuais com que o B. ou o investigador holandês Stoker toparam: 12 trazem a indicação "Apenas um nome indicado por Stoker". Até contabiliza títulos: "Serradura", poema de Sá-Carneiro! Outra prática é dar n.º de heterónimo a personagens de ficção, algumas só planeadas, como no projecto desse drama Ultimus Joculatorum, que lhe fornece mais 6! As personagens não escrevem, são escritas, não são autores mas assunto! Mas vão para a lista: Abílio Fernandes Quaresma, que torna a contar como Quaresma Decifrador ; o Tio Porco, também personagem das novelas "policiarias"; Marcos Alves, protagonista de uma novela; Fausto e Marino, de peças homónimas - e outros. Personagens também – de "romances do inconsciente", expressão de P. – são esses "espíritos" que ele psicografa: rendem uns 13 lugares, sendo 3 deles erradas grafias do mesmo. Mais 3 lugares para os amigos imaginários da infância, de que não há rasto escrito.

Quando alguém, num texto de P., se exprime na 1.ª pessoa, vira imediatamente heterónimo! E o B. caça-o e baptiza-o : o "Cego" que compõe quadras bandarristas (aparição única) é um ex. entre outros.

Como heterónimos contam pessoas reais, como o Padre Matos que P. ataca através da "personalidade literária" Joaquim Moura Costa, nos seus jornais O Fósforo e O Iconoclasta, (em 1909 - não em 1902, na Palavra, como o B. inventa). C.Pacheco também existiu (como provei no Jornal de Letras de 3.5.2011), assim como Caturra Júnior e Bi (o sobrinho Luís Roza Dias). E até M.N. Freitas – o primo Mário Nogueira de Freitas – conta na lista! No final ainda contabiliza mais 5, nomeados – diz – por alguns "estudiosos": António Botto, D. Sebastião, Ophelia, "anti-heterónimo" (mas conta à mesma!) e ainda acrescenta, por sua conta, Eliezer Kamenezky!

Muito ficou por dizer, mas – sorte do B.! – atingi os caracteres concedidos.

Teresa Rita Lopes
Publicado originalmente no jornal Público de 25 de Maio de 2012.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Campos manifesta-se sobre os seus 207 colegas heterônimos (127+75+5)

                          
 Carta psicografada por Teresa Rita Lopes

Prometi analisar com vagar, numa anterior comunicação, a “Quase autobiografia “ do Fernando, da autoria de José Paulo Cavalcanti Filho: aqui estou, contrariadamente, a cumprir a promessa. Mas imaginar esse livro a servir de manual aos nossos estudantes  – que têm todos Pessoa nos programas – causa-me tal calafrio que dou comigo a rapar da pena para essa inglória tarefa! É que o abnegado ex-ministro declarou publicamente estar disposto a abdicar dos seus direitos de autor para, com eles, porem nas mãos dos estudantes portugueses esse instrumento indispensável. (Lembra-nos outro político mas esse, ao menos, deu-lhes um objecto útil, um computador, enquanto que este devia ser retirado do mercado. Devíamos arranjar, para controlar estas situações, algo como a ASAE, que nos defende de alimentos impróprios para consumo.)
Vamos por partes – que o livro tem 700 e tal páginas !
Comecemos pelo assunto mais badalado: os 207 “heterônimos” que o autor se gaba de ter encontrado: 127,autênticos puro sangue, mais 75 que “embora não sejam considerados verdadeiros heterónimos”, não deixam de somar (é o Dr. que faz as contas) 202, a que acrescenta ainda “os cinco personagens reais” nomeados – “o que somaria 207 nomes” (´Cavalcanti dixit, p 396. Veja que também sei latim!)
 Oh Sr. Dr. em leis, coleccionador de “heterônimos”! O Sr., tão culto que abre os capítulos com epígrafes em latim, e que fala tanto de heterossexualidade e da nossa (minha e do Fernando) homossexualidade, não sabe que “hetero”, em grego, quer dizer “outro”,“diferente”?! Como é que o Sr. faz aparecer  “Fernando Pessoa”  como heterónimo de si próprio (é o n.º 44) ! E acrescenta mais dois à lista: “Fernando António” (nº 41) e “F. Nogueira Pessoa” (n.º37) ! Ah! ainda mais outro: Ferdinand Sumwan, n.º 40, (personagem de um drama de que já vou falar, “Ultimus Joculatorum”) que o Fernando explica, e o Sr. repete, ser ele próprio. Sugiro-lhe que some mais um: “Fernando Pessôa”, antes de ele ter retirado ao seu nome, em 1916, o acento circunflexo! Veja se percebe de uma vez por todas que o que o Sr. faz é coleccionar os nomes próprios que encontra nos textos do Fernando! Com este “critério de classificação” que, segundo diz (ibidem) usou, mas é coisa que o Sr. não tem, chegaria facilmente aos 500, incluindo Deus e a Virgem Maria e Cristo e Moisés e todas essas figuras bíblicas que o Fernando cita. Satanás já o Sr, lá meteu! (é o seu n.º 69).
Antes de empreender a sua lista, e o seu livro, o Sr. devia ter aprendido - o Fernando, na sua obra, matou-se a explicar - a diferença entre “heterónimo”, “personalidade literária” e “pseudónimo”. Heterónimos somos só três: eu, o Caeiro e o Reis – só através de nós “voa outro”, disse. Até o Bernardo Soares, que se fartou de escrever, não passa de “personalidade literária” ou “semi-heterónimo” – frisou o Fernando. É como se, das inúmeras sombras que ele projectou em seu redor, apenas três se tivessem soltado dos pés de quem as produziu. Só nós os três fomos à vida pelo nosso próprio pé, interagimos e escrevemos com nosso estilo próprio. Quem não perceber isto, não tem competência para abordar a obra pessoana. O Sr. não entende que não pode fazer emparceirar as nossas três pessoas e as nossas três obras (com que o Fernando, ao longo da vida, foi construindo o que chamou um “drama em gente”) com todos os nomes próprios em que tropeça nas nossas páginas?! Tudo o lhe vem à rede, é peixe! – isto é, “heterónimo”! O Sr. até dá esse estatuto a assinaturas casuais pescadas em livros e papéis soltos, algumas até riscadas! Fique sabendo que o Fernando estudava grafologia e se treinava a fazer assinaturas em tudo o que era papel: esse o caso de Jerome Gaveston, por exemplo, (seu “heterônimo” n.º 69) que nunca escreveu uma linha de prosa ou verso, de quem nada se sabe – o que é o caso de variados outros dos seus “heterônimos”.
E também não pode confundir heterónimo com pseudónimo, como faz constantemente, por exemplo a respeito de Tagus, (um concorrente , por sinal batoteiro, a prémios de charadas, num jornal de Durban), classificado como o 111º da sua lista - a quem  até o Sr. chama “pseudónimo dos tempos de Durban”. (Solucionava as charadas enviadas para o jornal por outro pseudónimo do esperto rapazinho, J.G.H.C. – como o Richard Zenith descobriu!). O pseudónimo é isto: uma máscara que encobre quem a usa, o heterónimo (invenção pessoana que o Sr. não pode malbaratar) revela o ser aos seus próprios olhos (“Fingir é conhecer-se”, disse Pessoa.)
Pseudónimos são também os seus “heterôninos” n.ºs 115 e 116: “Um Irregular do Transepto” (sob o qual escreve, em Janeiro de 1934, ao jornal católico A Voz, já sobre a Maçonaria) e “Um Sonhador Nostálgico do Abatimento e da Decadência”, que assina poemas panfletários contra Salazar, em 1935.
Pseudónimos de charadistas abastecem a sua lista com dúzias de “heterônimos” - que não são mais que ocasionais colaboradores dos jornalecos que o Fernando fabricava com um entusiasmo infantil que durou para lá do admissível (reúna de novo a junta médica, que contratou para fazer a autópsia do Fernando, para lhe avaliar este atraso mental). Até a “Lili”, “boneca de louça da irmã Teca”, que “escreve incompreensíveis charadas para um desses jornais infantis, A Palavra”, recebe um nº, o 77, na sua lista!
(Mas que orgulhosa que a Lili deve estar de passar à posteridade como “heterónimo”, num livro imorredoiro!) Noutro, O Palrador, que o Fernando continuou a compor depois do regresso a Lisboa, em 1905 (brincar aos jornalistas com mais de 17 anos é mais que razão para a tal junta médica!) também lhe fornece nomes em barda, até um nomeado “Trapalhão” (longe de mim estar a fazer-lhe qualquer insinuação!).
Outra habilidade sua é confundir heterónimo com personagem de ficção – que não escreve, esta, é escrita! não é autor, é assunto! Fausto é a personagem central do drama com esse título! Marino, idem, idem! Marcos Alves, a mesma coisa: neste caso, de uma narrativa. Abílio Fernandes Quaresma, seu n.º 4, é o mesmo caso, e ainda por cima conta duas vezes na sua lista, assim e como “Quaresma decifrador”. Outro decifrador  desses contos “policiários” com que o Fernando se regalava, , é o ex-sergeant William Byng (até adiante lhe foge a boca para a verdade e lhe chama “personagem”!). O “Tio Porco” (com sua licença!), que contracena com Quaresma, é a mesma coisa!  O “Autor da Carta da Argentina”, assim  chamado por si, na lista, é também a personagem de um conto em forma de carta, que se exprime na primeira pessoa! O “Cego”, também por si assim denominado, (n.º 25) , limita-se a entoar umas quadras de inspiração sebastianista-sidonista, depois das quais nunca mais apareceu! Se pegar em todas as personagens que, em poemas, se exprimem na 1.ª pessoa, duplica a sua lista: Olhe, o D.Sebastião, da Mensagem, que exclama: “Louco, sim, louco porque quis grandeza”! Será por isso que também acaba por admiti-lo como “heterônimo”?
Personagem é igualmente Jacob Dermot, nome filado numa página de diário (atenção, não é de 1900, como escreve, mas de 1906!) em que o Fernando confessa:”Dificuldades na execução mental de Jacob Dermot”. O Sr. até adopta como heterónimos personagens de livros alheios: é o que nos diz (p.378): Martin Hewitt, da obra de Arthur Morrisson (não Morrinson, como escreve!) : As Aventuras de Martin Hewitt, investigador (1896).
Também às personagens de um drama, Ultimus Joculatorum, o Sr. confere estatuto de heterónimo: Caesar Seek , n.º 20( não Seerk!); Jacob Satan (n.º 66), a propósito da qual atribui ao Fernando uma grosseria que ele não cometeu: diz que ele definiu J.Satan como “um espírito de M.”, abreviatura pudica para “merda”. Oh Sr. Dr. ! O que o Fernando escreveu, e em inglês, foi “a spirit of ill”! E o Sr. acrescenta: “Mestre de ternura”, saltando duas linhas desse texto pessoano, entre “mestre” (master” ) e “of tenderness”! Isso da ternura refere-se a “uma mulher”, que vem a seguir, a que até encarou chamar Magdalena, mas depois riscou. Que trapalhada! Outra personagem desta peça, a que o Fernando hesita chamar “Erasmus(?) ou Dare(?)” , rende dois lugares na sua lista! Vê-se bem que o Sr. sabe fazer render o capital – como não, se trabalha para o Banco Mundial (é o que apregoa na badana do livro)!
E ainda por cima abastece a sua lista com nomes que viu num livro do holandês Stoker, sem saber sequer a que correspondem: limita-se a dizer: “Mais um nome indicado por Stoker”, como um tal Major Bastos, a que acrescenta este esclarecimento iluminante: “segundo quem (o tal Stoker) parece ser pessoa reservada para assinar textos”. E a seguir, cedendo ao seu permanente tique coleccionista em relação aos  nomes próprios, deriva para outros Bastos, incluindo “um senhor Bastos que está em texto de propaganda que fez para as Tintas Berryloid”. (Oh Sr. Coleccionador de nomes!!! ) Com o habitual esclarecimento (“Mais um nome indicado por Stoker”!) nos aparece uma Maria Aurélia Antunes, um Álvaro Eanes, um Antony Harris, um Augustus West, um Aurélio Biana (devia ser do Norte!), um Darm Mouth, um Fr. de Castro, um Francis Neasden, um Frederico Barbarossa, um Isaías Costa,  um Jacinto Freire – e não tenho pachorra para continuar a enumerar!
Outro dislate seu é pôr na lista dos heterónimos os “espíritos” que o Fernando se entretinha a invocar, através da escrita mediúnica – a que ele chamava “romances do inconsciente”. Estas personagens – de “romances”, repare! -  não são autores, são só isso, personagens dessas ficções, com quem, aliás, o Fernando lidava ludicamente. Mas rendem aí uns treze lugares na sua lista!
E o que dizer do “heterônimo” “Serradura”, que o Stoker nomeia e o Sr. repete (p.388) e que é simplesmente o título de um poema do Sá-Carneiro? E o Sr. até diz que sabe disso! Mas sempre soma mais um!
E esses amigos das brincadeiras da infância que não deixaram texto literário nenhum (por isso não podem ser considerados “personalidades literárias” e muito menos heterónimos!), o Chevalier de Pas, o Capitaine Thibeaut, o Quebranto de Oessus? E retire também da sua lista as pessoas que existiram, sim senhor! como o Padre Mattos, (n.º 93) cujo nome, diz o Sr., foi “inspirado no psiquiatra  Júlio de Mattos!” (Esta intuição certeira que o Sr. tem para explicar a origem dos nossos nomes!). E não é que até ao psiquiatra o Sr. passa a chamar heterónimo? : “Como esse heterônimo, responde Pessoa ao inquérito da revista A Águia”(p.387)… Que trapalhada, Sr.Dr.! E olhe lá, se diz que o seu M.N.Freitas é o primo Mário Nogueira de Freitas, porque é que o faz constar na lista? Para contar no total dos 207, claro! E olhe que o Caturra Júnior (p.347) também existiu! Assim como o C.Pacheco e o Bi (disse-me o sobrinho Luís que assim lhe chamavam, em criança).
Deixe-me saudá-lo por ter essa imaginação que diz faltar ao Fernando: a revelação das origens dos nomes dos “heterónimos” são disso prova, como a que encontrou para o do serralheiro António e para o meu: o Fernando tinha um dentista que se chamava Ernesto de Campos! Também apreciei imenso a aproximação que fez entre a corcundinha Maria José, que contemplava o serralheiro bem amado da janela, e Ofélia, que também aí se debruçava para ver passar o Fernando. Ah! delirei sobretudo com a metamorfose do Fernando em serralheiro, chamado António porque se está mesmo a ver que era a projecção do Fernando António ! Mas do que mais gostei foi do seu final, em que perfilha as opiniões de alguns “estudiosos” - diz - segundo os quais o Fernando teria como heterónimos D.Sebastião , António Botto, Mário de Sá-Carneiro, sendo a Ofélia um “anti-heterónimo”! E de seu livre alvedrio, o Sr. acrescenta Eliezer Kamenezky! E entram todos na contagem!
Continuo sem perceber, como disse na comunicação anterior, porque é que o Sr. - que lamenta que não haja nesta longa lista de heterónimos “um homem de sucesso ou membro da nobreza” - se identifica de tal modo com o Fernando, “esse homem infeliz”, e chama ao seu livro uma “quase autobiografia”!
Sr. coleccionador, continue a coleccionar todos esses pertences do Fernando, desgraçadamente vendidos avulsos em leilões, que com isso presta um grande serviço à pátria língua portuguesa! Mas não cumpra a sua ameaça: de contaminar os nossos estudantes, já tão vítimas da Internet, com as falsas notícias que o seu livro espalha, através duma escrita atrapalhada e coxeante.
Apoio o Fernando na sua militância por uma “pátria língua portuguesa”, para que conta sobretudo com o nosso amado Brasil, e por isso sou, como ele, implacável para com todas as ofensas que se façam à nossa língua e à nossa cultura, pensando e escrevendo.

P.S.
Já composta esta missiva, chegou-me às mãos – da vista e do entendimento – a reacção do autor do livro em causa, que injuriosamente me apoda de louco e de bêbado e me acusa de o não ter lido. Ora essa! Como prometi na anterior comunicação, depois da minha reacção à entrevista em que o autor sintetiza as suas teses - apenas uma introdução a uma crítica a valer - mergulhei de cabeça na caudalosa biografia.
Aí fica a prova. Se a leitura me continuar a inspirar comentários, talvez reincida noutra crítica a valer. 

Teresa Rita Lopes